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sábado, 19 de junho de 2010

Eu Sei Mas Não Devia


Eu sei, mas não devia.
Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos
de fundos, e não ter outra vista
que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista,
logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora,
logo se acostuma a não abrir as cortinas.
E porque não abre as cortinas,
logo se acostuma a acender a luz.
E à medida que se acostuma, esquece o sol,
esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã,
sobressaltada porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus, porque não pode
perder o tempo de viagem.
A comer sanduíches porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado
sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal
e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos
e que haja números para os mortos.
E aceitando os números , aceita não acreditar
nas negociações de paz.
E não aceitando as negociações de paz,
aceita ler todo dia de guerra,
dos números de longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro
e ouvir no telefone:
"Hoje não posso ir".
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso
de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo
o que deseja e necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que se paga.
E a ganhar muito mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho,
para ganhar mais dinheiro,
para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar nas ruas
e ver cartazes.
A abrir revistas e ver anúncios.
A ligar a televisão e ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado,
lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.
À contaminação da água do mar.
À lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir passarinhos,
a não ter galo de madrugada,
a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher fruta do pé,
a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas,
tentando não perceber,
vai se afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali,
uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio, a gente senta
na primeira fila e torce o pescoço.
Se a praia está contaminada,
a gente molha só o pé e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro,
a gente consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer,
a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito
porque tem sempre o sono atrasado.
A gente se acostuma para não ralar na aspereza,
para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para esquivar-se da faca e da baioneta,
para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta,
e que de tanto se acostumar,
se perde de si mesma.
**
(Marina Colassanti)


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